[Artigo Oficial] Confronto
Dom 23 Fev - 17:04
O artigo oficial deste mês já está disponível e apresenta o capítulo final da história do nosso herói Tibicus! Clique nos links abaixo para ler os episódios anteriores:
1 – Chuva
2 – Resgate
3 – Desespero
4 – Dificuldade
5 – Rivalidade
6 – Entrega
7 – Reconhecimento
8 – Reunião
9 – Conflagração
10 – Insights
11 – Infortúnio
12 – Passado
13 – Desejo
14 – Retorno
As tábuas rangiam assustadoramente à medida em que as fortes ondas colidiam contra a frágil proa do navio. O barco certamente já tinha passado por dias melhores, mas foi o único que Tibicus pôde encontrar num espaço de tempo tão curto. Ele tentou localizar Tabea, mas ela havia se mudado para algum lugar desconhecido, a fim de vasculhar documentos antigos e buscar por pistas relacionadas ao mundo dos demônios. Dessa forma, apenas o druida Emilio e o próprio Tibicus zarparam na escuridão da noite com o objetivo de alcançar a mais profana de todas as citadels.
O ar frio do mar lhes causava desconforto nas narinas, enquanto o vento úmido soprava centenas de pequenos cristais de sal em seus cabelos. Ondas enormes espirravam espuma branca no convés, ensopando seus sapatos e colando suas roupas encharcadas sobre a pele. No entanto, Tibicus não se importava com o clima. Ele tinha mais com o que se preocupar. Por um momento, instaurou-se um silêncio constrangedor entre os dois. Tibicus sabia que era culpado pela amizade entre ele e Emilio ter sido demasiadamente abalada nos últimos meses.
“Ouça, Emilio, sei que desde aqueles acontecimentos em Venore…”
“Não se preocupe com isso…”. Emilio conhecia Tibicus melhor do que ele próprio. Para o druida, Tibicus era um grande guerreiro e um combatente brilhante, mas decerto não era um bom orador. As habilidades dele com uma espada equivaliam à sua inaptidão com as palavras. Um pedido de desculpas pela metade, repleto de declarações estapafúrdias, apenas sobrecarregaria desnecessariamente a primeira jornada deles juntos após tanto tempo. O fato é que Emilio estava feliz por estar de volta com seu velho amigo.
Tibicus assentiu, mas, embora estivesse de alguma forma aliviado por Emilio ter demonstrado tanto entendimento, ele gostaria de ter tido a oportunidade de desabafar…
O grande dia havia chegado. O retorno de Ferumbras era iminente. Um agradável arrepio desceu pelas costas de Tibicus. Ele ansiava muito por aquele dia… Logo o chapéu estaria em sua posse novamente e sua provação finalmente acabaria. Ele poderia pôr fim ao capítulo mais sombrio e sinistro da sua vida. Depois de mais alguns meses, até mesmo Tabea chegaria à conclusão de que procurar Fridolin não passava de um esforço inútil desde o início. Eles poderiam olhar para frente e dar prosseguimento às suas aventuras. Tibicus estava extremamente confiante: tudo voltaria a ser como antes.
Repentinamente, um estrondo ensurdecedor o assustou e o arrancou de seus pensamentos. Já era possível enxergar o topo da citadel. Lampejos azuis eram disparados por ameaçadoras nuvens negras que pairavam sobre a ilha e iluminavam a noite.
Quanto mais Tibicus e seu companheiro se aproximavam da ilha, mais claros ficavam os contornos cinzentos dos combatentes que estavam reunidos em grande número em frente aos altos muros da citadel.
]Inúmeros tibianos tinham navegado até aquele lugar. O navio de Tibicus estava a poucos metros de distância quando ele conseguiu reconhecer os primeiros rostos familiares. Jose the Butcher estava na praia. Ele havia adquirido a fama de matador impiedoso em inúmeras batalhas, mesmo além das fronteiras do continente. Poucos metros à esquerda, estava Maria, que conversava com o marido Eduardo. Ambos eram extraordinários conhecedores de Roshamuul e receberam de Walter Jaeger suas montarias antílopes matando apenas guzzlemaws.
Mais à leste, Tibicus avistou John Bookworm montando em seu flying book. Ele havia sido o primeiro a acessar a Secret Library e retornar de lá vivo, embora estivesse com alguns dedos a menos em sua mão esquerda e um toco carbonizado ocupando o lugar do seu braço direito. Até Marco e sua equipe tinham deixado o Falcon Bastion para testarem os seus limites. Tibicus mal conseguia acreditar. Os desbravadores mais poderosos de todo o mundo estavam reunidos. Os mais fortes, todos juntos em um só lugar.
Naquele momento, Tibicus se deu conta de toda a extensão do esforço que os tibianos estavam fazendo para impedir o retorno do feiticeiro maligno. Ele próprio havia enfrentado Ferumbras apenas uma vez na vida. Também sabia que posteriormente o feiticeiro tentou tomar o poder do Tibia repedidas vezes. Contudo, sempre que Tibicus era informado sobre uma nova tentativa de Ferumbras, acabava sendo precedido por outros tibianos não menos corajosos que logravam êxito em frustrar os planos sinistros dele.
Como ele pôde ser tão ingênuo a ponto de acreditar que seria o único a fazer oposição ao feiticeiro maléfico?
Tibicus encontrava-se exatamente no ponto onde estavam aglutinados os maiores comandantes e estrategistas já vistos em todo o Tibia. Heróis que já tinham feito coisas muito maiores que ele próprio. Equipes muito à frente da sua, tanto em número quanto em experiência de combate. Seria ele capaz de superar tamanha hegemonia?
O barco chegou à praia fazendo muito barulho.
“Tibicus, caro amigo, o que traz você aqui?” — questionou Jose the Butcher, enquanto estendia suas poderosas mãos para ajudar Tibicus a desembarcar.
“É bom ver você, Jose. Tenho certeza de que você já sabe a resposta para essa pergunta.”
Visivelmente confuso, Jose ergueu as sobrancelhas.
“Não vejo você aqui há bastante tempo. Não me diga que está em busca de um segundo chapéu? Você já não possui um? Ainda me recordo das pessoas celebrando seu triunfo naquela época. Tibicus, o herói lendário! Primeiro tibiano a possuir o chapéu do Ferumbras.”
Tibicus sorriu um pouco envergonhado. “Bem… Já faz muito tempo…”
“Insisto que você um dia me convide para um passeio em sua câmara de tesouros, nobre amigo. Desde a sua grande vitória, muitos de nós tentamos impedir até as menores tentativas daquele feiticeiro de recuperar o seu enorme poder. Alguns até conseguiram desenterrar mais chapéus, mas os deles não passam de cópias baratas se comparadas ao seu. Você é o dono do original! Dizem que o seu chapéu é a fonte absoluta do poder dele. Você não pode imaginar como todos aqui têm inveja de você.”
“Bem…” — Tibicus gaguejou. “Aparentemente, você realmente não sabe por que estou aqui… Não estou aqui para lutar por um segundo chapéu… É uma longa história, mas o chapéu original não está mais comigo e estou aqui para recuperá-lo.”
Jose ficou pálido em menos de um segundo. “O que você quer dizer com isso? Quem está com o seu chapéu?”
“Tudo bem, não se faça de estúpido mais do que você já é. Todo mundo já ouviu as notícias sobre Beefo e seus negócios sujos com Ferumbras. Beefo e Fridolin, aqueles dois filhos de um rotworm, são responsáveis por Ferumbras ter recuperado o chapéu.”
Jose cambaleou para trás.
“Ferumbras recuperou o seu chapéu original? Não, não, não! Isso não é nada bom!!! Isso é uma catástrofe!!! DEPRESSA!!! TODOS!!! SAIAM DESTA ILHA!!! DEPRESSA!!! CORRAM!!! SAIAM!!!”
Subitamente, uma força invisível interrompeu os gritos de pânico de Jose. Sem que ninguém notasse, o poder desconhecido se espalhou por toda a ilha. Ele se enrolou em volta dos tornozelos dos tibianos e atirou todos para o alto. Todos balançaram de ponta-cabeça pelo ar, muito distantes do chão. Tibicus também foi pego de surpresa. Ele gritava, berrava, chutava e socava, porém não conseguia atingir nenhum alvo. Ele retorcia e revirava o corpo, tentando se libertar de todo aquele aperto, mas não tinha chance alguma.
Os outros tibianos no entorno de Tibicus tentavam desesperadamente se desvencilhar. Tudo sem sucesso. Estavam todos presos. Como iscas em anzóis, eles estavam à mercê daquele poder misterioso.
Outro puxão arremessou Tibicus ainda mais para o alto. A força o afastou da multidão e o elevou vertiginosamente a uma altitude impressionante.
“Que gentileza sua se juntar a mim neste dia adorável, Tibicus!”
Aquela voz… Tibicus soube imediatamente quem estava falando com ele. O guerreiro arregalou os olhos. Ele estava de cabeça para baixo em frente ao ponto mais alto da cidadel e o feiticeiro mais poderoso do Tibia estava bem ali diante dele. Ferumbras!
“Como diz o ditado, sempre há um segundo encontro na vida…”. Ferumbras passou os dedos pela sua densa e longa barba. “Você não pode imaginar o quanto esperei por esse dia.”
Com apenas um dedo ele fez Tibicus flutuar para mais perto para que pudessem conversar cara a cara.
“Eu vou… GNNNHH!!!” — uma dor paralisante percorreu o corpo de Tibicus enquanto ele tentava abrir a boca.
“Shhhhh… Não é hora de cometer falhas verbais. Você deveria se considerar sortudo, pois testemunhará a minha ressurreição. Minha vingança. Isso é uma honra, sabia? Venha, mostrarei para você.”
Com um pequeno salto, Ferumbras pairou ao lado de Tibicus no ar. Eles deslizaram lentamente para baixo, em direção à praia.
“Sabe, Tibicus, eu estava planejando acabar com a sua existência miserável assim que recuperasse o meu chapéu. Mas então pensei comigo mesmo: por que ter tanta pressa?”
“Seu… GNNNHH!” — Tibicus sentiu uma dor ainda mais aguda.
“Apenas fique quieto, Tibicus. Cale-se e aproveite.”
Com outro pequeno movimento das mãos, Ferumbras endireitou os corpos dos outros tibianos.
“Todos vocês vieram até aqui para lutar contra mim, não é mesmo? Para novamente me humilharem. Covardes! Olhem para si mesmos. Vocês só ousaram vir até este lugar porque acreditaram que eu ainda estaria enfraquecido. Vocês pensaram que seria fácil me enfrentar. Vocês que…” — Ferumbras fez uma pequena pausa. “Vocês que puseram as mãos em minha filha! Vocês que a mataram brutalmente e profanaram a sua alma. Vocês conhecerão o meu verdadeiro poder!”
Ferumbras estalou os dedos e o chão de repente se partiu ao meio.
Tibicus não podia acreditar. Um profundo abismo negro havia engolido metade da ilha em segundos. Um precipício escuro e vazio. Um poço sem fundo, sem vida, nem esperança.
“Vocês pagarão por suas atrocidades! Eu terei a minha vingança! FRIDOL, ASCENDA!!! Saia de sua prisão e tome o que é seu!!! Recolha essas almas e cumpra o seu destino!!!”
Um rugido assombroso ressoou das infinitas profundezas do abismo. Um par de olhos brilhantes rompeu a escuridão e iluminou tudo em uma grandiosa explosão. Garras enormes saltaram do precipício e uma enorme criatura monstruosa emergiu à superfície. Um demônio de proporções jamais vistas ergueu-se do subsolo e concentrou seu olhar nas pequenas figuras que flutuavam no ar.
“TIBICUS!!!” — Tibicus reconheceu a voz de Emilio e seus olhos se encontraram. Emilio estava suspenso logo acima do abismo e acenava desesperadamente com os braços. “TIBICUS!!! AJUDE-ME!!! POR FA… AAARGH!!!”
O demônio desferiu um ataque contra a multidão indefesa. Suas garras afiadas perfuraram todas as armaduras. O monstro estraçalhou os combatentes mais fortes do Tibia com um único golpe. O demônio se alegrou em demasia com a chuva de sangue e tripas que caiu sobre ele. O impacto do golpe partiu ao meio o corpo de Emilio. Tibicus pôde apenas assistir ao torso do amigo ser abocanhado pela criatura.
“EMILIO!!!” — Tibicus esticou os braços em direção ao amigo já sem vida enquanto lágrimas escorriam pela sua face. “Emilio… Eu… Eu… Eu sinto muito…”
“Não se desculpe!” — Ferumbras se virou e agarrou o rosto de Tibicus com as mãos. “Esses homens tiveram o que mereciam! Eles não são dignos do seu luto.”
Tibicus conseguiu puxar a sua espada e a enfiou no coração do feiticeiro. “A única morte que não é digna de luto é a sua!”. Ferumbras ficou ofegante e foi para trás. No mesmo instante, o aperto em torno dos tornozelos de Tibicus diminuiu, fazendo com que ele despencasse em direção ao abismo. Ele passou pelo demônio ensopado de sangue e caiu no profundo buraco negro.
“Então é assim que termina…” — Tibicus pensou. Não havia como se orientar. Nem o vento, nem a luz e nem mesmo o som eram capazes de penetrar aquele vazio obscuro. Era quase com se ele estivesse sem peso.
Tibicus não tinha noção de quanto tempo havia se passado. Ele também não se importava. Seus pensamentos estavam em Emilio e em todos os outros tibianos brutalmente assassinados. Tantas mortes desnecessárias… Como Tabea iria reagir quando soubesse que nem ele e nem Emilio retornariam? Pobre Tabea, ela não teria mais ninguém agora… Contudo, Ferumbras tinha sido derrotado. Tibicus havia cravado a sua espada bem no peito dele. Só lhe restava torcer para que Tabea encontrasse o chapéu.
Naquele momento, um pequeno feixe de luz passou por Tibicus. Tão rápido quanto chegou, desapareceu na escuridão novamente.
Tibicus inclinou seu corpo na direção de onde a luz havia se originado e tentou enxergar algo através do vazio.
Nada.
“Não tenha muita esperança. Não existe escapatória para você.” — Tibicus novamente não podia acreditar. “Ferumbras! Impossível! Eu matei você. Eu o atingi com a minha espada! Você não é real!”
“Oh, Tibicus, como se um fracote como você pudesse me matar… Ninguém mais pode me derrotar. O pacto está selado. Graças a Fridolin, finalmente alcancei meu objetivo!!! SOU INVENCÍVEL!!!”
“Fridolin? Como assim?”
“Você sabe Tibicus… Esse chapéu me proporciona poderes incríveis… Você conseguiu arrancá-lo de mim uma vez… Eu não poderia correr esse risco novamente… Então procurei uma maneira de aumentar o poder do chapéu, isto é, o meu poder, ainda mais… E descobri como… Um tibiano disposto a trair a sua própria espécie, a entregar a sua vida por vontade própria, a fim de purificar a sua alma. Uma troca aterradora cujas condições somente poucos poderiam realmente cumprir.”
“Aquele demônio que você viu na superfície é o resultado dessa troca. Ele é capaz de absorver as almas das suas vítimas, combinar os seus poderes e transferi-los para esse chapéu. Em troca, a sua própria alma é libertada…”
“Você quer dizer que aquele demônio era…”
“Sim. Ele não tinha mais nada a perder. Uma escória da sociedade, excluído por seus atos. Abandonado e rejeitado por seus amigos. Fridolin era perfeito. Um ser devastado, impulsionado apenas por um único desejo que havia lhe restado: rever os seus pais. Eu era o único que poderia realizar o desejo dele em troca de um último favor diabólico. Enquanto a alma de Fridolin atravessava os portões sagrados e se reunia com os seus pais, seu corpo físico se tornou o demônio mais poderoso do Tibia. Uma atrocidade que se alimenta de almas e que está sob o meu controle. Não há ninguém que possa me parar desta vez.”
“EU VOU!!! EU VOU!!! EU VOU MATAR VOCÊ!” — Tibicus gritou.
“Você? Não… Você não vai… Olhe ao seu redor. Você construiu sua própria prisão e nem sequer percebeu. Seu narcisismo e egoísmo permitiram que os medos mais profundos do seu antigo amigo viessem à tona. Foi você que o abandonou quando ele mais precisou. E também foi você que o abandonou quando ele percebeu que havia sido manipulado durante todo esse tempo. Você queria saber apenas do meu chapéu. Pensou o pior de todos que ousaram trair você, sem questionar seus motivos nem ao menos por um segundo. Fridolin ficou horrorizado com a certeza de que a solidão continuaria destruindo sua alma como uma doença implacável. Uma infecção desagradável que sua mente frágil não seria capaz de suportar por muito tempo.”
“Quando Fridolin deixou este mundo, essa mesma infecção permaneceu. Aliás, está nos cercando agora mesmo. Você caiu diretamente nela. E agora ela irá mantê-lo prisioneiro por toda a eternidade. Esta é a minha vingança contra você, Tibicus. Você escolheu o meu chapéu em detrimento daqueles que o amavam. Você negligenciou e abandonou os seus amigos mais próximos por algo material. Agora você perdeu ambos! Ninguém sentirá a sua falta, Tibicus. Desfrute da sua condenação eterna!”
Com essas palavras, Ferumbras desapareceu e deixou Tibicus em companhia dos seus sentimentos e das dúvidas que surgiam.
Ele estava sozinho e havia perdido todos os seus amigos. Talvez Ferumbras estivesse certo. Talvez ele merecesse aquela punição. Sozinho para sempre, perdido em um mar de medo e desespero sem fim. Acompanhado por nada além da sua própria culpa, por toda a eternidade. Ele tinha perdido de vista todas as coisas que realmente importavam.
Tudo o que ele podia esperar agora era que algum dia uma nova e melhor versão dele surgisse. Um corajoso tibiano que realmente fosse merecedor do título de herói. Um combatente de coração puro e mente forte, pronto para restabelecer a luta contra Ferumbras. Ele não estaria lá para testemunhar, mas estava confiante de que em algum momento este dia chegaria.
Como um velho sábio uma vez lhe disse: uma flor desabrocha e desaparece dentro de um ano e uma outra flor fará o mesmo no ano seguinte.
1 – Chuva
2 – Resgate
3 – Desespero
4 – Dificuldade
5 – Rivalidade
6 – Entrega
7 – Reconhecimento
8 – Reunião
9 – Conflagração
10 – Insights
11 – Infortúnio
12 – Passado
13 – Desejo
14 – Retorno
As tábuas rangiam assustadoramente à medida em que as fortes ondas colidiam contra a frágil proa do navio. O barco certamente já tinha passado por dias melhores, mas foi o único que Tibicus pôde encontrar num espaço de tempo tão curto. Ele tentou localizar Tabea, mas ela havia se mudado para algum lugar desconhecido, a fim de vasculhar documentos antigos e buscar por pistas relacionadas ao mundo dos demônios. Dessa forma, apenas o druida Emilio e o próprio Tibicus zarparam na escuridão da noite com o objetivo de alcançar a mais profana de todas as citadels.
O ar frio do mar lhes causava desconforto nas narinas, enquanto o vento úmido soprava centenas de pequenos cristais de sal em seus cabelos. Ondas enormes espirravam espuma branca no convés, ensopando seus sapatos e colando suas roupas encharcadas sobre a pele. No entanto, Tibicus não se importava com o clima. Ele tinha mais com o que se preocupar. Por um momento, instaurou-se um silêncio constrangedor entre os dois. Tibicus sabia que era culpado pela amizade entre ele e Emilio ter sido demasiadamente abalada nos últimos meses.
“Ouça, Emilio, sei que desde aqueles acontecimentos em Venore…”
“Não se preocupe com isso…”. Emilio conhecia Tibicus melhor do que ele próprio. Para o druida, Tibicus era um grande guerreiro e um combatente brilhante, mas decerto não era um bom orador. As habilidades dele com uma espada equivaliam à sua inaptidão com as palavras. Um pedido de desculpas pela metade, repleto de declarações estapafúrdias, apenas sobrecarregaria desnecessariamente a primeira jornada deles juntos após tanto tempo. O fato é que Emilio estava feliz por estar de volta com seu velho amigo.
Tibicus assentiu, mas, embora estivesse de alguma forma aliviado por Emilio ter demonstrado tanto entendimento, ele gostaria de ter tido a oportunidade de desabafar…
O grande dia havia chegado. O retorno de Ferumbras era iminente. Um agradável arrepio desceu pelas costas de Tibicus. Ele ansiava muito por aquele dia… Logo o chapéu estaria em sua posse novamente e sua provação finalmente acabaria. Ele poderia pôr fim ao capítulo mais sombrio e sinistro da sua vida. Depois de mais alguns meses, até mesmo Tabea chegaria à conclusão de que procurar Fridolin não passava de um esforço inútil desde o início. Eles poderiam olhar para frente e dar prosseguimento às suas aventuras. Tibicus estava extremamente confiante: tudo voltaria a ser como antes.
Repentinamente, um estrondo ensurdecedor o assustou e o arrancou de seus pensamentos. Já era possível enxergar o topo da citadel. Lampejos azuis eram disparados por ameaçadoras nuvens negras que pairavam sobre a ilha e iluminavam a noite.
Quanto mais Tibicus e seu companheiro se aproximavam da ilha, mais claros ficavam os contornos cinzentos dos combatentes que estavam reunidos em grande número em frente aos altos muros da citadel.
]Inúmeros tibianos tinham navegado até aquele lugar. O navio de Tibicus estava a poucos metros de distância quando ele conseguiu reconhecer os primeiros rostos familiares. Jose the Butcher estava na praia. Ele havia adquirido a fama de matador impiedoso em inúmeras batalhas, mesmo além das fronteiras do continente. Poucos metros à esquerda, estava Maria, que conversava com o marido Eduardo. Ambos eram extraordinários conhecedores de Roshamuul e receberam de Walter Jaeger suas montarias antílopes matando apenas guzzlemaws.
Mais à leste, Tibicus avistou John Bookworm montando em seu flying book. Ele havia sido o primeiro a acessar a Secret Library e retornar de lá vivo, embora estivesse com alguns dedos a menos em sua mão esquerda e um toco carbonizado ocupando o lugar do seu braço direito. Até Marco e sua equipe tinham deixado o Falcon Bastion para testarem os seus limites. Tibicus mal conseguia acreditar. Os desbravadores mais poderosos de todo o mundo estavam reunidos. Os mais fortes, todos juntos em um só lugar.
Naquele momento, Tibicus se deu conta de toda a extensão do esforço que os tibianos estavam fazendo para impedir o retorno do feiticeiro maligno. Ele próprio havia enfrentado Ferumbras apenas uma vez na vida. Também sabia que posteriormente o feiticeiro tentou tomar o poder do Tibia repedidas vezes. Contudo, sempre que Tibicus era informado sobre uma nova tentativa de Ferumbras, acabava sendo precedido por outros tibianos não menos corajosos que logravam êxito em frustrar os planos sinistros dele.
Como ele pôde ser tão ingênuo a ponto de acreditar que seria o único a fazer oposição ao feiticeiro maléfico?
Tibicus encontrava-se exatamente no ponto onde estavam aglutinados os maiores comandantes e estrategistas já vistos em todo o Tibia. Heróis que já tinham feito coisas muito maiores que ele próprio. Equipes muito à frente da sua, tanto em número quanto em experiência de combate. Seria ele capaz de superar tamanha hegemonia?
O barco chegou à praia fazendo muito barulho.
“Tibicus, caro amigo, o que traz você aqui?” — questionou Jose the Butcher, enquanto estendia suas poderosas mãos para ajudar Tibicus a desembarcar.
“É bom ver você, Jose. Tenho certeza de que você já sabe a resposta para essa pergunta.”
Visivelmente confuso, Jose ergueu as sobrancelhas.
“Não vejo você aqui há bastante tempo. Não me diga que está em busca de um segundo chapéu? Você já não possui um? Ainda me recordo das pessoas celebrando seu triunfo naquela época. Tibicus, o herói lendário! Primeiro tibiano a possuir o chapéu do Ferumbras.”
Tibicus sorriu um pouco envergonhado. “Bem… Já faz muito tempo…”
“Insisto que você um dia me convide para um passeio em sua câmara de tesouros, nobre amigo. Desde a sua grande vitória, muitos de nós tentamos impedir até as menores tentativas daquele feiticeiro de recuperar o seu enorme poder. Alguns até conseguiram desenterrar mais chapéus, mas os deles não passam de cópias baratas se comparadas ao seu. Você é o dono do original! Dizem que o seu chapéu é a fonte absoluta do poder dele. Você não pode imaginar como todos aqui têm inveja de você.”
“Bem…” — Tibicus gaguejou. “Aparentemente, você realmente não sabe por que estou aqui… Não estou aqui para lutar por um segundo chapéu… É uma longa história, mas o chapéu original não está mais comigo e estou aqui para recuperá-lo.”
Jose ficou pálido em menos de um segundo. “O que você quer dizer com isso? Quem está com o seu chapéu?”
“Tudo bem, não se faça de estúpido mais do que você já é. Todo mundo já ouviu as notícias sobre Beefo e seus negócios sujos com Ferumbras. Beefo e Fridolin, aqueles dois filhos de um rotworm, são responsáveis por Ferumbras ter recuperado o chapéu.”
Jose cambaleou para trás.
“Ferumbras recuperou o seu chapéu original? Não, não, não! Isso não é nada bom!!! Isso é uma catástrofe!!! DEPRESSA!!! TODOS!!! SAIAM DESTA ILHA!!! DEPRESSA!!! CORRAM!!! SAIAM!!!”
Subitamente, uma força invisível interrompeu os gritos de pânico de Jose. Sem que ninguém notasse, o poder desconhecido se espalhou por toda a ilha. Ele se enrolou em volta dos tornozelos dos tibianos e atirou todos para o alto. Todos balançaram de ponta-cabeça pelo ar, muito distantes do chão. Tibicus também foi pego de surpresa. Ele gritava, berrava, chutava e socava, porém não conseguia atingir nenhum alvo. Ele retorcia e revirava o corpo, tentando se libertar de todo aquele aperto, mas não tinha chance alguma.
Os outros tibianos no entorno de Tibicus tentavam desesperadamente se desvencilhar. Tudo sem sucesso. Estavam todos presos. Como iscas em anzóis, eles estavam à mercê daquele poder misterioso.
Outro puxão arremessou Tibicus ainda mais para o alto. A força o afastou da multidão e o elevou vertiginosamente a uma altitude impressionante.
“Que gentileza sua se juntar a mim neste dia adorável, Tibicus!”
Aquela voz… Tibicus soube imediatamente quem estava falando com ele. O guerreiro arregalou os olhos. Ele estava de cabeça para baixo em frente ao ponto mais alto da cidadel e o feiticeiro mais poderoso do Tibia estava bem ali diante dele. Ferumbras!
“Como diz o ditado, sempre há um segundo encontro na vida…”. Ferumbras passou os dedos pela sua densa e longa barba. “Você não pode imaginar o quanto esperei por esse dia.”
Com apenas um dedo ele fez Tibicus flutuar para mais perto para que pudessem conversar cara a cara.
“Eu vou… GNNNHH!!!” — uma dor paralisante percorreu o corpo de Tibicus enquanto ele tentava abrir a boca.
“Shhhhh… Não é hora de cometer falhas verbais. Você deveria se considerar sortudo, pois testemunhará a minha ressurreição. Minha vingança. Isso é uma honra, sabia? Venha, mostrarei para você.”
Com um pequeno salto, Ferumbras pairou ao lado de Tibicus no ar. Eles deslizaram lentamente para baixo, em direção à praia.
“Sabe, Tibicus, eu estava planejando acabar com a sua existência miserável assim que recuperasse o meu chapéu. Mas então pensei comigo mesmo: por que ter tanta pressa?”
“Seu… GNNNHH!” — Tibicus sentiu uma dor ainda mais aguda.
“Apenas fique quieto, Tibicus. Cale-se e aproveite.”
Com outro pequeno movimento das mãos, Ferumbras endireitou os corpos dos outros tibianos.
“Todos vocês vieram até aqui para lutar contra mim, não é mesmo? Para novamente me humilharem. Covardes! Olhem para si mesmos. Vocês só ousaram vir até este lugar porque acreditaram que eu ainda estaria enfraquecido. Vocês pensaram que seria fácil me enfrentar. Vocês que…” — Ferumbras fez uma pequena pausa. “Vocês que puseram as mãos em minha filha! Vocês que a mataram brutalmente e profanaram a sua alma. Vocês conhecerão o meu verdadeiro poder!”
Ferumbras estalou os dedos e o chão de repente se partiu ao meio.
Tibicus não podia acreditar. Um profundo abismo negro havia engolido metade da ilha em segundos. Um precipício escuro e vazio. Um poço sem fundo, sem vida, nem esperança.
“Vocês pagarão por suas atrocidades! Eu terei a minha vingança! FRIDOL, ASCENDA!!! Saia de sua prisão e tome o que é seu!!! Recolha essas almas e cumpra o seu destino!!!”
Um rugido assombroso ressoou das infinitas profundezas do abismo. Um par de olhos brilhantes rompeu a escuridão e iluminou tudo em uma grandiosa explosão. Garras enormes saltaram do precipício e uma enorme criatura monstruosa emergiu à superfície. Um demônio de proporções jamais vistas ergueu-se do subsolo e concentrou seu olhar nas pequenas figuras que flutuavam no ar.
“TIBICUS!!!” — Tibicus reconheceu a voz de Emilio e seus olhos se encontraram. Emilio estava suspenso logo acima do abismo e acenava desesperadamente com os braços. “TIBICUS!!! AJUDE-ME!!! POR FA… AAARGH!!!”
O demônio desferiu um ataque contra a multidão indefesa. Suas garras afiadas perfuraram todas as armaduras. O monstro estraçalhou os combatentes mais fortes do Tibia com um único golpe. O demônio se alegrou em demasia com a chuva de sangue e tripas que caiu sobre ele. O impacto do golpe partiu ao meio o corpo de Emilio. Tibicus pôde apenas assistir ao torso do amigo ser abocanhado pela criatura.
“EMILIO!!!” — Tibicus esticou os braços em direção ao amigo já sem vida enquanto lágrimas escorriam pela sua face. “Emilio… Eu… Eu… Eu sinto muito…”
“Não se desculpe!” — Ferumbras se virou e agarrou o rosto de Tibicus com as mãos. “Esses homens tiveram o que mereciam! Eles não são dignos do seu luto.”
Tibicus conseguiu puxar a sua espada e a enfiou no coração do feiticeiro. “A única morte que não é digna de luto é a sua!”. Ferumbras ficou ofegante e foi para trás. No mesmo instante, o aperto em torno dos tornozelos de Tibicus diminuiu, fazendo com que ele despencasse em direção ao abismo. Ele passou pelo demônio ensopado de sangue e caiu no profundo buraco negro.
“Então é assim que termina…” — Tibicus pensou. Não havia como se orientar. Nem o vento, nem a luz e nem mesmo o som eram capazes de penetrar aquele vazio obscuro. Era quase com se ele estivesse sem peso.
Tibicus não tinha noção de quanto tempo havia se passado. Ele também não se importava. Seus pensamentos estavam em Emilio e em todos os outros tibianos brutalmente assassinados. Tantas mortes desnecessárias… Como Tabea iria reagir quando soubesse que nem ele e nem Emilio retornariam? Pobre Tabea, ela não teria mais ninguém agora… Contudo, Ferumbras tinha sido derrotado. Tibicus havia cravado a sua espada bem no peito dele. Só lhe restava torcer para que Tabea encontrasse o chapéu.
Naquele momento, um pequeno feixe de luz passou por Tibicus. Tão rápido quanto chegou, desapareceu na escuridão novamente.
Tibicus inclinou seu corpo na direção de onde a luz havia se originado e tentou enxergar algo através do vazio.
Nada.
“Não tenha muita esperança. Não existe escapatória para você.” — Tibicus novamente não podia acreditar. “Ferumbras! Impossível! Eu matei você. Eu o atingi com a minha espada! Você não é real!”
“Oh, Tibicus, como se um fracote como você pudesse me matar… Ninguém mais pode me derrotar. O pacto está selado. Graças a Fridolin, finalmente alcancei meu objetivo!!! SOU INVENCÍVEL!!!”
“Fridolin? Como assim?”
“Você sabe Tibicus… Esse chapéu me proporciona poderes incríveis… Você conseguiu arrancá-lo de mim uma vez… Eu não poderia correr esse risco novamente… Então procurei uma maneira de aumentar o poder do chapéu, isto é, o meu poder, ainda mais… E descobri como… Um tibiano disposto a trair a sua própria espécie, a entregar a sua vida por vontade própria, a fim de purificar a sua alma. Uma troca aterradora cujas condições somente poucos poderiam realmente cumprir.”
“Aquele demônio que você viu na superfície é o resultado dessa troca. Ele é capaz de absorver as almas das suas vítimas, combinar os seus poderes e transferi-los para esse chapéu. Em troca, a sua própria alma é libertada…”
“Você quer dizer que aquele demônio era…”
“Sim. Ele não tinha mais nada a perder. Uma escória da sociedade, excluído por seus atos. Abandonado e rejeitado por seus amigos. Fridolin era perfeito. Um ser devastado, impulsionado apenas por um único desejo que havia lhe restado: rever os seus pais. Eu era o único que poderia realizar o desejo dele em troca de um último favor diabólico. Enquanto a alma de Fridolin atravessava os portões sagrados e se reunia com os seus pais, seu corpo físico se tornou o demônio mais poderoso do Tibia. Uma atrocidade que se alimenta de almas e que está sob o meu controle. Não há ninguém que possa me parar desta vez.”
“EU VOU!!! EU VOU!!! EU VOU MATAR VOCÊ!” — Tibicus gritou.
“Você? Não… Você não vai… Olhe ao seu redor. Você construiu sua própria prisão e nem sequer percebeu. Seu narcisismo e egoísmo permitiram que os medos mais profundos do seu antigo amigo viessem à tona. Foi você que o abandonou quando ele mais precisou. E também foi você que o abandonou quando ele percebeu que havia sido manipulado durante todo esse tempo. Você queria saber apenas do meu chapéu. Pensou o pior de todos que ousaram trair você, sem questionar seus motivos nem ao menos por um segundo. Fridolin ficou horrorizado com a certeza de que a solidão continuaria destruindo sua alma como uma doença implacável. Uma infecção desagradável que sua mente frágil não seria capaz de suportar por muito tempo.”
“Quando Fridolin deixou este mundo, essa mesma infecção permaneceu. Aliás, está nos cercando agora mesmo. Você caiu diretamente nela. E agora ela irá mantê-lo prisioneiro por toda a eternidade. Esta é a minha vingança contra você, Tibicus. Você escolheu o meu chapéu em detrimento daqueles que o amavam. Você negligenciou e abandonou os seus amigos mais próximos por algo material. Agora você perdeu ambos! Ninguém sentirá a sua falta, Tibicus. Desfrute da sua condenação eterna!”
Com essas palavras, Ferumbras desapareceu e deixou Tibicus em companhia dos seus sentimentos e das dúvidas que surgiam.
Ele estava sozinho e havia perdido todos os seus amigos. Talvez Ferumbras estivesse certo. Talvez ele merecesse aquela punição. Sozinho para sempre, perdido em um mar de medo e desespero sem fim. Acompanhado por nada além da sua própria culpa, por toda a eternidade. Ele tinha perdido de vista todas as coisas que realmente importavam.
Tudo o que ele podia esperar agora era que algum dia uma nova e melhor versão dele surgisse. Um corajoso tibiano que realmente fosse merecedor do título de herói. Um combatente de coração puro e mente forte, pronto para restabelecer a luta contra Ferumbras. Ele não estaria lá para testemunhar, mas estava confiante de que em algum momento este dia chegaria.
Como um velho sábio uma vez lhe disse: uma flor desabrocha e desaparece dentro de um ano e uma outra flor fará o mesmo no ano seguinte.
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